14/09/2021 - SME - Educação
De pessoa em situação de rua à professora da rede municipal de ensino de Florianópolis
A história de Isabel Ferraz, que se formou em Pedagogia aos 52 anos de idade

foto/divulgação: Arquivo SME

Fotografia atual da professora Isabel

Isabel Ferraz é professora na rede municipal de ensino de Florianópolis. Tem 64 anos e formou-se em Pedagogia aos 52 anos. Também cursou Ludopedagoia, que aborda a importância da ludicidade na infância.

 

 

 

Nada foi fácil para ela. Tem marcas do tempo no corpo e na alma. Mas, venceu as barreiras da vida. Quando criança viveu em situação de rua com a mãe. Foi abusada pelo padrasto. Começou a trabalhar com 9 anos de idade. Apanhou no trabalho, da patroa, e em casa, do companheiro, com quem teve quatro filhos.

 

 

 

Voltou a confiar nos homens e a ser feliz. Há 29 anos vive com um ex-colega de trabalho. Voltou a estudar.

 

 

 

Isabel leciona para os estudantes do primeiro ao quarto ano, na Escola Básica Retiro da Lagoa.  Acredita que tem o dom de ensinar, de acreditar, de fazer o possível para as crianças aprenderem a ser um humano melhor.

 

 

 

São histórias de vida como essa que mostram como é importante a caminhada, alerta o secretário de Educação de Florianópolis. “De como é fundamental a luta, a luta no bom sentido da palavra, no sentido da realização, da busca constante pelo bem-estar. Esse é um caso concreto, o de Isabel, de que é possível vencer barreiras e voltar a sorrir”, assinala Maurício Fernandes Pereira.

 

 

 

O SAPATINHO VERMELHO E AS RUAS COMO ABRIGO


 

Em Porto Alegre, quando fez quatro anos ganhou da mãe um sapato vermelho com fivela. Foram passear no Parque Redenção, na Avenida João Pessoa. Como era aniversário ganhou até um balão, que mais tarde se perdeu no ar.

 

 

 

Depois do passeio, a vida voltou ao normal para a pequena Isabel, nascida em 27 de julho de 1957 na capital gaúcha. Ela e a mãe retornaram para a Praça da Matriz para dormirem ao relento. O bom de lá era que pela manhã muitas vezes ganhavam café dos guardas do Palácio do Governo, o Piratini.

 

 

 

Outro ponto para o descanso era o Viaduto Otávio Rocha,uma imponente estrutura de concreto armado, com três vãos. Está localizado no centro da cidade, servindo como leito da Rua Duque de Caxias quando cruza por cima da Avenida Borges de Medeiros.

 

 

 

Quando chovia iam para o Albergue Dias da Cruz, na Avenida João Pessoa.

 

 

 

Para ter uns trocados, a mãe trabalhava de faxineira no Bairro Auxiliadora, zona nobre da cidade.  Isabel ia junto. “Caminhávamos muito do Centro da cidade ao Bairro Auxiliadora onde morava um casal que minha mãe trabalhou desde que eu era recém-nascida”.

 

 

 

O casal quis adotar Isabel.  “Acho que a minha mãe não deixou, suposição que tenho”.

 

 

 

ABUSO DE PADRASTO, PAI E CARRO RABO DE PEIXE

 

 

Quando Isabel tinha cinco anos, a mãe conheceu um homem e as duas foram morar com ele. “Já no primeiro dia, ele me pegou no colo e colocou as mãos dele em minhas partes íntimas. Lembro que não gostei disso”.

 

 

 

Na Rua 24 de outubro, no Bairro Moinhos de Vento, a mãe dizia que um restaurante da região era do pai da menina. “Lá comíamos de graça”.

 

 

 

Recorda que a mãe mencionava. “Lá vai o teu pai num carro rabo de peixe amarelo”. Mas, “eu nunca o via”.

 

 

 

Aos seis anos de idade, Isabel e a mãe estavam na Avenida Duque de Caxias, esperando o padrasto com o carrinho de reciclagem.

 

 

 

O pai da menina aparece. Finalmente, ela vê o rosto dele. O pai se agachou, para ficar na altura da criança. Perguntou a ela se queria ir morar com ele. “Eu disse que não, que queria ficar com a minha mãe”.

 

 

 

O pai desapareceu da vida dela definitivamente. “Já adulta procurei o meu pai nas redes sociais e não o encontrei”.

 

 

 

Moravam em casas abandonadas no Bairro Cidade Baixa. Os anos se passavam e os abusos continuavam. Duraram até os 12 anos. “Ele mostrava os órgãos genitais para mim e fazia com que eu pegasse neles”. A mãe já tinha três filhos com o abusador.

 

 

 

Aos 8 anos de idade, de presente de natal, ganhou um par de chinelo havaianas branco. Ficou toda prosa.

 

 

 

Aos 9 anos, chegou a vez de começar a trabalhar.  Essa criança passou a cuidar de um bebê de 9 meses.

 

 

 

ALÔ RIO DE JANEIRO: NÃO FOI TÃO MARAVILHOSO ASSIM

 

 

Aos 12 anos, em 1969, pensou que teria uma vida nova. Foi trabalhar no Rio de Janeiro para uma família com parentes em Porto Alegre.

 

 

 

Estava no terceiro ano primário, pois foi colocada na escola muito tarde. A patroa a matriculou no quarto ano. Após fazer alguns exames, foi direto para o sexto ano, devido à sua capacidade intelectual.

 

 

 

A vida de empregada doméstica foi traumática no início. Tomava água em que enxaguava as roupas.

 

 

 

O apartamento da família possuía o piso parquet, fabricado em madeira maciça. “Lustrava o chão todo dia e não podia deixar nenhum vinco de luz, tenho marcas nos joelhos até hoje”.

 

 

 

Apanhava da patroa. Apanhava por qualquer coisa. Levava socos, pontapés. Apanhava com cabo de vassoura. “Se eu demorasse na ida à padaria, apanhava.  Se o filho da mulher jogasse um brinquedo pela janela e caísse no apartamento do comediante Grande Otelo, sobrava para a Isabel. “Eu apanhava também por causa disso”.

 

 

 

“Eu nunca disse um ‘ai’ pra ninguém, porque ela se fazia de boazinha na frente de outras pessoas”.

 

 

 

A mocinha precisou de um sutiã. A escola teve que mandar um bilhete para a patroa providenciar uma peça para ela.

 

 

 

Ganhava roupas bonitas da sobrinha da patroa, mas a patroa não a deixava usar. “Andava sempre com os pés descalços e com uns vestidos grandes”.

 

 

 

Seu momento de glória era quando era hora de ir para a escola. “Eu adorava colocar o uniforme, camisa branca com o símbolo no bolso, saia marinho plissada, conga marinho e meias brancas”. A escola fica no Bairro Copacabana, a Doutor Cocio Barcellos.

 

 

 

Isabel veio para Porto Alegre com a essa patroa passar alguns dias. Antes disso, foi ameaçada. “Se você não quiser retornar comigo para o Rio de Janeiro, eu te mato”, vem à mente de Isabel essa frase. “Com medo, voltei com eles para o Rio”.

 

 

 

A FUGA

 

 

Ou se jogava do edifício onde morava no Rio ou fugia. Isabel encarava essas duas possibilidades. Quando foi para o sétimo ano, mudou de escola. No primeiro dia de aula fugiu do prédio na Ladeira dos Tabajaras, na época zona nobre de Copacabana.

 

 

 

Foi de Copacabana até o Bairro Botafogo procurando um guarda para perguntar-lhe onde ficava a FEBEM- Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor.

 

 

 

Depois de uma semana, a diretora da instituição disse que a menina teria que voltar para a capital gaúcha.

 

 

 

”Fiquei triste, pois lá era muito bom. Conheci meninas, tinha comida e cama boa para dormir. Ninguém me acordava de madrugada para preparar mamadeira, ninguém me batia, todos me tratavam bem”.

 

 

 

Isabel seguiu para a Rodoviária acompanhada por uma policial feminina. Deram para ela dinheiro para alimentação. Foram 29 horas de viagem para a garotinha de 14 anos de idade.

 

 

 

Sentou ao lado de uma senhora que lhe pagou todos os lanches.  Com o dinheiro economizado, comprou mais tarde uma calça boca de sino, com desenhos de baleia, e um chinelo de pneu.

 

 

 

Encontrou a mãe num barraco na Rua Tuiuti, travessa entre a Rua Avaí e a André da Rocha. Não tinha onde ela dormir direito e cozinhavam no fogo de chão.

 

 

 

RETORNO AOS ESTUDOS E RETIRADA DO NOME DO PADRASTO

 

 

Virou babá de uma menina de 6 anos. Dormia no emprego. “Tinha uma garota de minha idade. Ali eu aprendi muitas coisas sobre menstruação e coisas de meninas”. Ganhou um tênis, da marca “bamba”, e um kichute, uma mistura de tênis e chuteira. Também ganhou algumas roupas. Porém, o mais importante para ela era ter comida e cama.

 

 

 

Isabel insistiu nos estudos. Fez o Encceja, Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos. Um exame que ajuda as pessoas a conseguirem suas certificações de conclusão de ensino fundamental e médio.

 

 

 

Tomou outra providência. Ela tinha sido registrada com o sobrenome do padrasto.  “Eu odiava disso”. “Aos 18 anos, fui num cartório no Centro e achei minha certidão.  Fiz minha identidade com meu nome verdadeiro”.

 

 

 

PAIXÃO E NOVAS SURRAS

 

 

Isabel se apaixonou. Passou a viver com um cara com quem teve quatro filhos.

 

 

 

Rodrigo nasceu no dia 10 de março de 1978 e Rubens no dia 21 de abril de 1980. Thairone veio ao mundo em 28 de agosto de 1983 e Tamara em 6 de outubro de 1984.

 

 

 

Apanhava até grávida, era humilhada, xingada de tudo que era coisa. “Ele não tinha nenhum respeito por mim.  Era eu que trabalhava de faxina, de doméstica para sustentar os filhos”.

 

 

 

Moravam com Isabel duas irmãs e a mãe. O marido, o traste, como o chamava, aparecia em casa uma vez por mês quebrando tudo. Por que aguentar tudo isso? “Para não ser chamada de mãe solteira”.

 

 

 

O filho Thairone, ainda criança, ficou anêmico. Pálido, com fadiga, tontura e batimento cardíaco acelerado. Uma vizinha de Isabel ofereceu-se para cuidar do menino. Ele viveu com outra família até 2015.

 

 

 

Com toda dificuldade, Isabel deixou de lado o aluguel. Comprou uma casinha e uma irmã continuava morando com ela.

 

 

 

Trabalhava como camareira num motel. Depois foi trabalhar no Hospital Divina Providência como auxiliar de nutrição.

 

 

 

Só morando ela e as crianças, passou num concurso no Hospital de Clínicas. “Ganhava muito pouco”. Depois trabalhou no Hospital Mãe de Deus.

 

 

 

O seu outro destino foi ser copeira no Motel Vison. Labutava à noite. De dia ficava em casa. “Sempre tinha que levar um filho ao médico, ir na escola deles, coisas assim. Foi legal trabalhar à noite”. 

 

 

 

AMOR PELO RECEPCIONISTA

 

 

O coração de Isabel, 34 anos, bateu mais forte pelo recepcionista do motel, Flávio Ferraz, 34 anos, solteiro, morando com a avó. Conversavam muito, contavam piadas. “Mas ele não sabia que eu gostava dele”.

 

 

 

Um dia tomou coragem e enviou um telegrama para o Flávio: “problema só por ti resolvido”.

 

 

 

Ele pensou que Isabel queria dinheiro emprestado e foi no local combinado no dia 17 de agosto de 1992.  Falou que gostava dele. Ele ficou com o rosto vermelho. “E ele disse que tinha sempre um chinelo velho para um pé torto”. E foi embora.

 

 

 

A pedido de Flávio, os dois tiveram um novo encontro, dia 14 de setembro. “Ele disse: coloca a mão no meu coração e sinta o que tu fez comigo”.

 

 

 

Desde, então, estão juntos há 29 anos. “Ele criou meus filhos. A minha filha Tamara diz que ele é o pai dela”.

 

 

 

VIROU PEDAGOGA

 

 

Fez um curso de Educador Assistente pelo Senac. “E gostei muito”. Depois cursou o Normal na Escola 1º de Maio. E aos 47 anos de idade, começou a trabalhar numa creche, sem carteira assinada, para pegar experiência.

 

 

 

Em seguida foi contratada em outra escola Infantil. Depois de um mês em sala de aula, passou para a coordenação pedagógica. “Não fui muito aceita no início, mas com o tempo fui conquistando a simpatia de todos”.

 

 

 

Aos 52 anos formou-se no ensino superior em Pedagogia, em abril de 2011, pela Ulbra, de Canoas, grande Porto Alegre. “Quis uma formatura com tudo que eu tinha direito. Estavam presentes filhos e netos e pessoas com a qual eu trabalhei, como por exemplo quando era doméstica”.

 

 

 

Isabel tem pós-graduação em Ludopedagogia, um segmento da Pedagogia que aborda a importância de jogos e brincadeiras na educação de crianças.

 

 

 

FAMÍLIA APORTA NA CAPITAL CATARINENSE

 

 

Com o marido veio para Florianópolis em 2019. Em 2021, aos 64 anos, começou a dar aulas na rede municipal de ensino. Leciona para os estudantes do primeiro ao quarto ano, na Escola Básica Retiro da Lagoa.

 

 

 

“Gosto de passar conhecimento para as crianças, gosto de vê-las questionando, fazendo conclusões. Gosto de fazê-las felizes”.


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